As ruas estão cheias de robôs. Eles já não sentem o coração bater mais forte. Nem sempre foi assim… Amavam e muitas vezes até eram tomados pelo sentimento contrário, o ódio. Eram bons tempos aqueles, e em minha memória ainda lembro destas manifestações humanas. Podiam ocorrer quase ao mesmo tempo em uma mesma pessoa, conforme sua disposição de espírito. Contraditórias, tais emoções apareciam, ou seja, ficavam transparentes à vista de todos (em geral, sem qualquer espanto, talvez, no máximo, curiosidade) quando alguma lembrança agradável ou infeliz de sua vida lhe acorresse à mente. Hoje, há tão somente uma cultura de cálculo. A racionalidade foi transformada em racionalização de sentimentos, das trocas afetivas, desde a amizade pura e simples até o âmbito do amor humano. Há muito a perder… Corpos-máquinas, corpos-zumbis não podem se permitir sensações – um raio de luz em meio à penumbra, o crepitar das águas na areia de uma praia, o sorriso e a mão de uma criança desconhecida que nos acena na calçada, um gesto amigável, mas anônimo em meio à agitação de uma grande cidade…
Havia, para qualquer lado que olhássemos a alegria, enfim, a esperança. Os mais velhos, para não dizer octogenários ou mesmo nonagenários, em sua maior parte gostavam de transmitir o encantamento que havia na vida, além de seus mistérios e perigos. Estou atravessando os quarenta anos e posso dar testemunho disso em minha juventude. Meus sobrinhos, já em sua infância foram abordados agressivamente por pessoas desconhecidas, que estavam em fase de envelhecimento. Sem chance. Sem ternura, sem senso de proteção à jovem condição do grupo, e nem mesmo em relação às crianças que poderiam estar no entorno. Ouvi deles (meus sobrinhos, que ainda eram pré-adolescentes no final dos anos 90) relatos assustadores de tentativa de agressão. Um exemplo inesquecível para mim: alguém que poderia ser avô em idade, arremete a cavalo contra o grupo de amigos (um dos sobrinhos estava com dez anos e o outro com 12, ou seja, pouco mais que crianças) por pura intolerância. Nada de drogas. Estavam reunidos em uma praça, de um bairro de região metropolitana, já que ali moravam, depois da aula e do almoço. Ao investigar “verbalmente” com os sobrinhos sobre o evento, pude notar que o grupinho “invadira” por curiosidade uma área “ainda” verde do bairro, passando a cerca com arames farpados. Tratava-se de uma pequena chácara. Resumo: qual o menino que, em tempos passados não enveredou mato adentro (se teve, obviamente, a oportunidade) para ver o que havia mais adiante, um pouco mais… Meu irmão fez isso à exaustão nos anos 70, acompanhado de nosso cachorro de estimação – o “Tobe”. Estamos, infelizmente, perdendo nossa capacidade de nos envolver pela vida. Todos perdemos um pouco de nossa humanidade, e isto começa a valer, neste primeiros dez anos do ano dois mil, tanto para crianças, jovens, maduros e velhos.
Nesta tentativa de resgate, que é também a tentativa de um mapeamento da realidade que vivemos, eu poderia afirmar que o enlevo dos espíritos era visível nos olhos, nos gestos. Quase podíamos “ver” o que nos relatavam:no entusiasmo de uma grande amiga que viajou para longe, nas lembranças cheias de ensinamento de nossos avós, a ternura uma pessoa especialmente amada, ou, então, a alegria da chegada de alguém muito aguardado. Na outra via, pude sentir vivamente a raiva e extravasá-la, sem constrangimentos, bem como ser testemunha ocular de eventos emocionais deste tipo. Era reconhecida como emoção, desde que extravasada sem excessos, ou seja, sem violência física ou verbal, era vista como um sentimento saudável.
UM TEMPO EM QUE CRIANÇAS, JOVENS E MULHERES SÃO OBJETOS DESCARTÁVEIS…
Isto mudou radicalmente desde meados dos anos 90. Obviamente, antes desta década também havia, em qualquer parte do planeta, o descontrole emocional, ou seja, explosões de ódio. Estas se manifestavam eventualmente de maneira individual, ou em grupos extremistas. Em geral, no entanto, não era sequer cogitada a possibilidade de alguém atirar uma frágil criança pela janela do sexto andar, ou então, a própria mãe atirar seu bebê nas águas de um rio, escondido dentro de uma sacola plástica. Estes registros aconteceram no Brasil recentemente, como se fizessem parte de uma onda atípica de violência contra as crianças. Para espanto e lamento geral, pouquíssimas destas pequenas vítimas foram resgatadas com vida. No mundo inteiro, nas diversas formas de agressões à infância, os casos de sobrevivência são mínimos. Queimaduras, inclusive com requinte de crueldade, isto, com pontas de cigarro, ou surras com pedaços de madeira, além do assédio, violação e morte dos seres humanos mais indefesos que existem sob a face da terra: CRIANÇAS! Há eventos coletivos na atualidade, que nos fazem lembrar a Idade Média: é o caso de Verona, na Itália, por exemplo. Foi instituído o atendimento de pronto socorro para recolhimento de bebês abandonados: é acionado quando um bebê recém-nascido é “depositado” em uma berço térmico na igreja matriz. Há um botão que faz sair este berço da parede lateral (nos fundos, por certo!), onde a mãe ou casal que não abortaram a criança dão uma “chance” de vida ao indesejado ser que geraram. A medida decorreu em razão do alarmante número de bebês recém-nascidos deixados ao longo das margens do rio, entre os arbustos!
A falta de amor (que em seu grau máximo se transforma em ódio) está gerando o atual quadro, que é mundial. Sabemos que até mesmo um filhotinho de cão, depois de um mínimo de aleitamento tem alguma chance de sobreviver. No entanto, as crianças espalhadas pela Terra têm sido arrancadas do ventre de suas jovens e não tão jovens futuras mães. Entre os motivos, diferentemente de outras épocas, a decisão parte delas próprias, talvez em sua maioria. Isto, vem revelando as várias faces da crescente desumanização em curso – entre elas, a pura e simples indiferença pela vida (pelo menos momentânea), a supervalorização de suas carreiras, o progresso material da família, uso de drogas pelas adolescentes, ou, simplesmente o sexo exercido não mais com o requisito do afeto, tanto por jovem como homens e mulheres adultos.
Além disso, há o fato, de caráter hediondo do rapto de meninas meninos para prostituição nas ruas, ou para filmagens e venda deste material pela internet. As meninas têm sido o principal alvo das redes de prostituição infantil. Entretanto, sabemos que adolescentes aliciam meninos para filmagens, que são vendidas para sites de pedofilia. Portanto, parece que a degradação de nossa humanidade atingiu um estágio quase irreversível. A História registra que, diante de uma grande desgraça, os israelitas jogavam terra sobre seus corpos, em sinal de lamento, luto, desespero. Esta imagem, diante de tais fatos, considero muito adequada para o nosso tempo. Mas, ao que parece a capacidade de perceber o trágico está ficando cada vez mais rara…
O DINHEIRO “ENGOLIU” A ESPERANÇA QUE HAVIA NAS CRIANÇAS E NOS JOVENS?
Assim, o tempo em que crianças e adultos eram tão somente crianças e adultos já passou, infelizmente. No entanto, sempre houve reviravoltas… Hoje, ambos são programados por todo tipo de abordagem mercadológica para o consumo desenfreado, maquinal. E, na pior das hipóteses, podem ser transformadas, do dia para a noite, em vítimas, as quais, em sua inocência, sem o menor traço de compaixão são jogadas em antros, ambientes subterrâneos abjetos, e lá são subalimentadas. Isto acontece principalmente na Ásia, onde estas redes demoníacas, por comida as submetem a terem contato com pedófilos. Entre eles, estão principalmente os grandes industriais. Entretanto, é importante frisar que este horror perpassa a sociedade humana, que sem sombra de dúvida está doente, não como alguém que adquire uma enfermidade, e sim, como quem decide viver em estado permanentemente doentio. Um viciado em drogas, devido a transtornos psíquicos, ou outros fatores, padece de um certo tipo de doença. Entretanto, acredito que está em “desgraça”, que significa ausência da Graça, ainda que esta possa ser uma condição circunstancial, sendo passível de recuperação. No entanto, em geral, drogados não exploram sua condição para tirar proveito de alguém, afora os furtos realizados pelo desespero do vício. Em geral, os que aliciam crianças e jovens para manterem o tráfico são indivíduos muito calculistas para se deixarem consumir pelas drogas… Estes, por sua vez, têm contatos em altos círculos, bem longe das fontes fornecedoras. Vivem em arranha-céus espalhados pelos quatro quantos do mundo.
Dentro das redes que exploram sexualmente crianças e jovens há uma estratégia perversa: de maneira fria são tornadas dependentes de drogas por seus raptores. Não esqueçamos que isto se tornou endêmico devido às amplas possibilidades de comunicação, do celular à internet, que possibilitam a ação sofisticada do crime organizado, na forma de redes espalhadas pelo mundo. O círculo vicioso termina quando as vítimas, jovens ou adultas morrem de Aids, doenças venéreas ou mesmo de overdose. Como mencionei anteriormente, na Ásia há o predomínio deste quadro, que ultraja a infância, e entre os “adeptos” (seres humanos abjetos) não há distinção de nacionalidade. Nos países europeus, e nas Américas, os ambientes de prostituição infantil são “maquiados”. O rapto, o aliciamento por pobreza, e a drogradição das crianças e jovens são condutas adotadas com o mesmo padrão da Europa Oriental e Ásia.
Atualmente, o crime organizado ampliou seus tentáculos e acabou por se “especializar” na exploração sexual de corpos que, há apenas um século nasciam para serem sagradamente felizes. Não havia redes de narcotráfico, prostituição, etc. Podiam sonhar com dias melhores ou até satisfatórios, porque dignos. No horizonte de nossos dias, são tornados objetos de consumo de uma sociedade planetariamente doentia e degradada.
Ainda quanto a estas redes de prostituição, a existência deste revela que estamos diante de uma tragédia social globalizada, e que se amplia. Por extensão, também incluem em sua “agenda” de lucro fácil o rapto e aprisionamento de mulheres para prostituição para produção de vídeos independentes, às vezes anunciados como “caseiros”. As vítimas são ludibriadas com promessas de trabalho doméstico, sendo trazidas principalmente da Europa Oriental. Portanto, estes grupos de criminosos operam in loco ou no mundo virtual, estendendo sua ação desde o tráfico de drogas, de órgãos humanos, tanto de crianças como de adultos, de armas. Assim, dominam a produção de pornografia infanto-juvenil, aprisionando mulheres com o mesmo objetivo. Neste caso, tais redes raptam prostitutas ou mulheres prostituídas, que são levadas para estúdios de filmagem no meio do nada, sendo praticamente torturadas por homens drogados (obviamente, com certo tipo de droga). A dor é real neste tipo de produção pornográfica. Há consumidores “seletos”, principalmente na camada social de maior poder poder aquisitivo.
Não é facilmente identificável esta realidade, no entanto, o conjunto da sociedade humana está sob ameaça constante, porque velada, disfarçada em mil faces…
“DES-PROGRAMAÇÃO”…
Talvez, se deixarmos de ser “programáveis”, possamos reverter este perverso e lamentável quadro, e através da própria internet. Sites que oferecem “serviços” não muito bem definidos, e que escondem atividades ilícitas devem ser denunciados a organismos que investigam e processam seus administradores, owners. Ambientes reservados na rede, com conteúdos (fotos, textos) que envolvem crianças e jovens, devem ser da mesma forma denunciados. No Brasil, a Polícia Federal tem um setor específico, que voltou a atuar com mais precisão e determinação, já que houve um incremento de verbas públicas para sua atuação em relação aos crimes dentro da internet.
Sob outro aspecto, os jovens em geral, ainda que não conheçam (graças a Deus, nem tudo está perdido!) a realidade da prostituição infantil e juvenil, têm sido reduzidos à perspectiva de, unicamente, obterem um diploma de curso superior. Têm que ascender ao topo, isto é, devem lutar (muito e a qualquer preço!) por prestígio e riqueza. Nessa ordem… É evidente que isto se aplica a uma parcela pequena da população mundial. De qualquer modo, são jovens “formatados” exclusivamente para um objetivo: a profissionalização. Nada além… Em suma, já não há uma cultura que incentive, favoreça qualquer responsabilidade pelo que acontece à sociedade em que estão inseridos. São educados pelos pais para a competição (que é real) e para o sucesso pessoal a qualquer custo. As universidades, por sua vez, em geral têm sido gerenciadas para oferecer este “pacote de vida” aos jovens… Nos departamentos de marketing de tais universidades (e o número delas vem aumentando) seus integrantes se referem aos alunos como “público alvo”. Na verdade, em suas cabeças os imaginam circulando em um shopping… Uma realidade patética e triste.
Robôs podem fazer micro-cirurgias, desarmar bombas, minas, mas seres humanos devem nutrir sentimentos uns pelos outros, viver suas emoções. Voltar a viver, portanto, voltar a amar.
A omissão nos tira a paz.
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