Esta verdade afirma a plenitude de imortalidade à qual o homem está destinado; constitui, portanto, uma lembrança da dignidade da pessoa, especialmente do seu corpo.

Raffaello Sanzio
No final do Símbolo dos Apóstolos a Igreja proclama: “Creio na ressurreição da carne e na vida eterna”. Nesta fórmula, estão contados de uma forma breve os elementos fundamentais da esperança escatológica da Igreja.
1. A ressurreição da carne
A Igreja proclamou, em muitas ocasiões, a sua fé na ressurreição de todos os mortos no final dos tempos. Trata-se, de certo modo, da ‘extensão’ da Ressurreição de Jesus Cristo, “o primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8,29) a todos os homens, vivos e mortos, justos e pecadores, que terá lugar quando Ele vier no final dos tempos. Com a morte, a alma separa-se do corpo; com a ressurreição, corpo e alma unem-se de novo entre si, para sempre (cf. Catecismo, 997). O dogma da ressurreição dos mortos, ao mesmo tempo em que fala da plenitude da imortalidade à qual o homem está destinado, é uma viva lembrança da sua dignidade, especialmente na sua vertente corporal. Fala da bondade do mundo, do corpo, do valor da história vivida dia a dia, da vocação eterna da matéria. Por isso, contra os gnósticos do século II, falou-se da ressurreição da carne, ou seja, da vida do homem no seu aspecto mais material, temporal, mutável e, aparentemente, caduco.
São Tomás de Aquino considera que a doutrina sobre a ressurreição é natural em relação à causa final (porque a alma está feita para estar unida ao corpo e vice-versa), mas é sobrenatural em relação à causa eficiente (que é Deus)[1].
O corpo ressuscitado será real e material, mas não terreno nem mortal. São Paulo opõe-se à ideia de uma ressurreição como transformação que se leva a cabo dentro da história humana e fala do corpo ressuscitado como ‘glorioso’ (cf. Fl 3,21) e ‘espiritual’ (cf. 1 Cor 15,44). A ressurreição do homem, como a de Cristo, terá lugar, para todos, depois da morte.
A Igreja não promete aos homens, em nome da fé cristã, uma vida de sucesso assegurado nesta terra. Não haverá, assim, uma utopia, pois a nossa vida terrena estará sempre marcada pela Cruz. Ao mesmo tempo, pela recepção do Batismo e da Eucaristia, o processo da ressurreição já começou de algum modo (cf. Catecismo, 1000). Segundo São Tomás, na ressurreição, a alma informará o corpo tão profundamente, que nele ficarão refletidas as suas qualidades morais e espirituais[2]. Neste sentido, a ressurreição final, que terá lugar com a vinda de Jesus Cristo na glória, tornará possível o juízo definitivo de vivos e defuntos.
Com respeito à doutrina da ressurreição, podem ser acrescentadas quatro reflexões:
– a doutrina da ressurreição final exclui as teorias da reencarnação, segundo as quais a alma humana, depois da morte, emigra para outro corpo, repetidas vezes se for preciso, até ficar definitivamente purificada. A esse respeito, o Concílio Vaticano II falou do “único curso da nossa vida”[3], pois “está determinado que os homens morram uma só vez” (Heb 9,27);
– manifestação clara da fé da Igreja na ressurreição do próprio corpo é a veneração das relíquias dos Santos;
– embora a cremação do cadáver humano não seja ilícita, a não ser que tenha sido escolhida por motivos contrários à doutrina cristã (CIC, 1176), a Igreja aconselha vivamente a conservar o piedoso costume de sepultar os cadáveres. Com efeito, “os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal, que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (Catecismo, 2300);
– a ressurreição dos mortos coincide com o que a Sagrada Escritura chama de a chegada dos “novos céus e da nova terra” (Catecismo, 1043; 2 P 3,13; Ap 21,1). Não só o homem chegará à glória, mas todo o cosmos, no qual o homem vive e atua, será transformado. “A Igreja, à qual todos foram chamados em Cristo Jesus e na qual, por graça de Deus, alcançamos a santidade”, lemos na Lumen Gentium (n. 48), não será levada à sua plena perfeição senão ‘quando vier o tempo da restauração de todas as coisas (cf. At 3,21)’ e, quando, juntamente com o gênero humano, também o universo inteiro, que está intimamente ligado ao homem e por ele atinge o seu fim, será perfeitamente restaurado em Cristo”. Haverá continuidade certamente entre este mundo e o mundo novo, mas também uma importante descontinuidade. A espera da instauração definitiva do Reino de Cristo não deve debilitar mas avivar, com a virtude teologal da esperança, o empenho de procurar o progresso terreno (cf. Catecismo, 1049).
2. O sentido cristão da morte
O enigma da morte do homem compreende-se somente à luz da ressurreição de Cristo. Com efeito, a morte, a perda da vida humana, apresenta-se como o maior mal na ordem natural, precisamente porque é algo definitivo, que só será vencido definitivamente quando Deus ressuscitar os homens em Cristo.
Por um lado, a morte é natural no sentido em que a alma pode separar-se do corpo. Por este ponto de vista, a morte marca o final da peregrinação terrena. Depois da morte, o homem não pode merecer ou desmerecer mais. “Com a morte, a opção de vida feita pela pessoa humana torna-se definitiva”[4]. Já não terá a possibilidade de se arrepender. Logo depois da morte irá para o Céu, para o Inferno ou para o Purgatório. Para que isto se verifique, existe o que a Igreja chamou de juízo particular (cf. Catecismo, 1021-1022). O fato de a morte constituir o limite do período de prova serve ao homem para orientar bem a sua vida, para aproveitar o tempo e outros talentos, para atuar retamente, para se dedicar ao serviço dos outros.
Por outro lado, a Escritura ensina que a morte entrou no mundo por causa do pecado original (cf. Gn 3,17-19; Sb 1,13-14; 2,23-24; Rm 5,12; 6,23; Tg 1,15; Catecismo, 1007). Neste sentido, deve ser considerada como castigo pelo pecado; o homem, que queria viver à margem de Deus, deve aceitar o dissabor da ruptura com a sociedade e consigo mesmo como fruto do seu afastamento. No entanto, Cristo “assumiu a morte num ato de submissão total e livre à Vontade de seu Pai” (Catecismo, 1009). Com a sua obediência, venceu a morte e ganhou a ressurreição para a humanidade. Para quem vive em Cristo pelo Batismo, a morte continua a ser dolorosa e repugnante, mas já não é uma lembrança viva do pecado, mas uma oportunidade preciosa de poder corredimir com Cristo, mediante a mortificação e a entrega aos outros. “Se morremos com Cristo, com Ele viveremos” (2 Tm 2,11). Por este motivo, “graças a Cristo, a morte cristã tem um sentido positivo” (Catecismo, 1010).
3. A vida eterna em comunhão íntima com Deus
Ao criar e redimir o homem, Deus destinou-o à eterna comunhão com Ele, ao que São João chama a ‘vida eterna’, ou o que se costuma chamar de o ‘Céu’. Assim, Jesus comunica a promessa do Pai aos seus: “Muito bem, servo bom e fiel; já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te com teu senhor” (Mt 25,21). A vida eterna não é como “uma sucessão contínua de dias do calendário, mas algo parecido com o instante repleto de satisfação, onde a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade. Seria o momento de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Podemos somente procurar pensar que este momento é a vida em sentido pleno, um incessante mergulhar na vastidão do ser, ao mesmo tempo em que ficamos simplesmente inundados pela alegria”[5].
A vida eterna é que dá sentido à vida humana, ao empenho ético, à entrega generosa, ao serviço abnegado, ao esforço por comunicar a doutrina e o amor de Cristo a todas as almas. A esperança cristã no céu não é individualista, mas refere-se a todos[6]. Com base nesta promessa, o cristão pode estar firmemente convencido de que ‘vale a pena’ viver a vida cristã em sua plenitude. “O céu é o fim último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva” (Catecismo, 1024); assim o exprimiu Santo Agostinho nas Confissões: “Fizestes-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração está inquieto até descansar em ti”[7]. A vida eterna, com efeito, é o objeto principal da esperança cristã.
“Os que morrem na graça e na amizade de Deus e estão perfeitamente purificados, viverão para sempre com Cristo. Serão para sempre semelhantes a Deus, porque O verão ‘como Ele é’ (1 Jo 3,2), ‘face a face’ (1 Cor 13,12)” (Catecismo, 1023). A teologia denominou este estado de ‘visão beatífica’. “Em razão da sua transcendência, Deus só pode ser visto tal como é quando Ele mesmo abrir seu Mistério à contemplação direta do homem e o capacitar para tanto” (Catecismo, 1028). O Céu é a expressão máxima da graça divina.
Por outro lado, o céu não consiste numa pura, abstrata e imóvel contemplação da Trindade. Em Deus o homem poderá contemplar todas as coisas que, de algum modo, fazem referência à sua vida, gozando delas e, em especial, poderá amar às pessoas que amou no mundo com um amor puro e perpétuo. “Não o esqueçais nunca: depois da morte há de receber-vos o Amor. E no amor de Deus encontrareis, além do mais, todos os amores limpos que tenhais tido na terra”[8]. O gozo do céu chega à sua plena culminância com a ressurreição dos mortos. Segundo Santo Agostinho, a vida eterna consiste num descanso eterno e numa deliciosa e suprema atividade[9].
Que o Céu dure eternamente não significa que nele o homem deixe de ser livre. No céu, o homem não peca, não pode pecar, porque, vendo Deus face a face, vendo-O, além do mais, como fonte viva de toda a bondade criada, na realidade não quer pecar. Livre e filialmente, o homem salvo ficará em comunhão com Deus para sempre. Com isso, sua liberdade alcançou a sua plena realização.
A vida eterna é o fruto definitivo da doação divina ao homem. Por isso, tem algo de infinito. No entanto, a graça divina não elimina a natureza humana, nem em seu ser, nem em suas faculdades, nem sua personalidade, nem o que tenha merecido durante a vida. Por isso, há distinção e diversidade entre aqueles que gozam da visão de Deus, não quanto ao objeto, que é o próprio Deus, contemplado sem intermediários, mas quanto à qualidade do sujeito: “quem tem mais caridade participa mais da luz da glória e verá mais perfeitamente a Deus e será feliz”[10].
4. O inferno como recusa definitiva de Deus
A Sagrada Escritura afirma, repetidas vezes, que os homens que não se arrependerem dos seus pecados graves perderão o prêmio eterno da comunhão com Deus, sofrendo, pelo contrário, a desgraça perpétua. “Morrer em pecado mortal, sem arrependimento e sem dar acolhimento ao amor misericordioso de Deus, significa permanecer separado d’Ele para sempre, por nossa própria e livre escolha. É este estado de autoexclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa pela palavra ‘Inferno'” (Catecismo, 1033). Não é que Deus predestine alguém à condenação perpétua; é o homem que, procurando o seu fim último à margem de Deus e da sua vontade, constrói para si um mundo isolado onde não pode penetrar a luz e o amor de Deus. O inferno é um mistério, o mistério do Amor recusado, é sinal do poder destruidor da liberdade humana quando se afasta de Deus[11].
Relativamente ao inferno, é tradição distinguir entre ‘pena de dano’, a mais fundamental e dolorosa, que consiste na separação perpétua de Deus, sempre desejado ardentemente pelo coração humano, e ‘pena dos sentidos’, a que se alude frequentemente nos evangelhos com a imagem do fogo eterno.
A doutrina sobre o inferno no Novo Testamento apresenta-se como um chamado à responsabilidade no uso dos dons e talentos recebidos e à conversão. A sua existência faz com que o homem vislumbre a gravidade do pecado mortal e a necessidade de evitá-lo por todos os meios, principalmente, como é lógico, mediante a oração confiante e humilde. A possibilidade da condenação recorda aos cristãos a necessidade de viver uma vida inteiramente apostólica.
Sem dúvida, a existência do inferno é um mistério: o mistério da justiça de Deus para com aqueles que se fecham ao Seu perdão misericordioso. Alguns autores pensaram na possibilidade da aniquilação do pecador impenitente quando morre. Esta teoria é difícil de conciliar com o fato de que Deus deu, por amor, a existência – espiritual e imortal – a cada homem[12].
5. A purificação necessária para o encontro com Deus
“Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do Céu” (Catecismo, 1030). Pode-se pensar que muitos homens, mesmo que não tenham vivido uma vida santa na terra, não se mantiveram definitivamente no pecado. A possibilidade de serem limpos das impurezas e imperfeições da vida, mais ou menos malograda, depois da morte apresenta-se, então, como una nova bondade de Deus, como uma oportunidade para se preparar para entrar na comunhão íntima com a santidade de Deus. “O purgatório é uma misericórdia de Deus, para limpar os defeitos daqueles que desejam identificar-se com Ele”[13].
O Antigo Testamento fala da purificação ultraterrena (cf. 2 Mc 12,40-45). São Paulo na primeira Carta aos Coríntios (1 Cor 3,10-15), apresenta a purificação cristã, nesta vida e na futura, através da imagem do fogo; fogo que, de algum modo, emana de Jesus Cristo, Salvador, Juiz e Fundamento da vida cristã[14]. Embora a doutrina do Purgatório não tenha sido definida formalmente até a Idade Média[15], a antiquíssima e unânime prática de oferecer sufrágios pelos defuntos, especialmente mediante o santo sacrifício eucarístico, é indício claro da fé da Igreja na purificação ultraterrena. Com efeito, não teria sentido rezar pelos defuntos se estivessem ou já salvos no céu ou então condenados no inferno. Os protestantes, na sua maioria, negam a existência do purgatório, já que lhes parece uma confiança excessiva nas obras humanas e na capacidade da Igreja de interceder por aqueles que deixaram este mundo.
Mais do que um lugar, o purgatório deve ser considerado como um estado de temporário e doloroso afastamento de Deus, no qual se perdoam os pecados veniais, se purifica a inclinação para o mal, que o pecado deixa na alma, e se supera a ‘pena temporal’ devida ao pecado. O pecado não só ofende a Deus, e causa dano ao próprio pecador como também, através da Comunhão dos Santos, causa dano à Igreja, ao mundo, à humanidade. A oração da Igreja pelos defuntos restabelece, de algum modo, a ordem e a justiça: principalmente por meio da Santa Missa, das esmolas, das indulgências e das obras de penitência (cf. Catecismo, 1032).
Os teólogos ensinam que no purgatório se sofre muito, de acordo com a situação de cada um. No entanto, trata-se de uma dor com significado, “uma dor bem-aventurada”[16]. Por isso, convidam-se os cristãos a procurar a purificação dos pecados na vida presente mediante a contrição, a mortificação, a reparação e a vida santa.
6. As crianças que morrem sem o Batismo
A Igreja confia à misericórdia de Deus as crianças que morreram sem terem recebido o Batismo. Há motivos para pensar que Deus, de algum modo, as acolhe, quer pelo grande carinho que Jesus manifestou pelas crianças (cf. Mc 10,14), quer porque enviou o seu Filho com o desejo de que todos os homens se salvem (cf. 1 Tm 2,4). Ao mesmo tempo, o fato de confiar na misericórdia divina não é motivo para adiar a administração do Sacramento do Batismo às crianças recém-nascidas (cf. CIC 867), que confere uma particular configuração com Cristo: “significa e realiza a morte ao pecado e a entrada na vida da Santíssima Trindade por meio da configuração ao mistério pascal de Cristo” (Catecismo, 1239).
Paul O’Callaghan
Bibliografia básica:
– Catecismo da Igreja Católica, 988-1050.
Leituras recomendadas:
João Paulo II, Catequese sobre o Credo IV (audiências de 25-05-1999 a 4-08-1999).
Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 30-11-2007.
São Josemaria, Homilia «A esperança cristã», em Amigos de Deus, 205-221.
[1] Cf. São Tomás, Summa Contra Gentiles, IV, 81.
[2] Cf. São Tomás, Summa Theologiae, III. Suppl., qq. 78-86.
[3] Concílio Vaticano II, Const. Lumen Gentium, 48.
[4] Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 30-11-2007, 45.
[5] Ibidem, 12.
[6] Cf. Ibidem, 13-15, 28, 48.
[7] Santo Agostinho, Confissões, 1, 1, 1.
[8] São Josemaria, Amigos de Deus, 221.
[9] Cf. Santo Agostinho, Epistulae, 55, 9.
[10] São Tomás, Summa Theologiae, I, q. 12, a. 6, c.
[11] “Com a morte, a opção de vida feita pelo homem torna-se definitiva; esta sua vida está diante do Juiz. A sua opção, que tomou forma ao longo de toda a sua vida, pode ter caracteres diversos. Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste gênero. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é isto que se indica com a palavra inferno” (Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 45).
[12] Cf. Ibidem, 47.
[13] São Josemaria, Sulco, 889.
[14] Com efeito, Bento XVI na Spe Salvi diz que “alguns teólogos recentes são de parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador” (Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 47).
[15] Cf. DS 856, 1304.
[16] Bento XVI, Enc. Spe Salvi, 47.
Publicado em Opus Dei.