Imagem: http://infanciacatolica.blogspot.com/2010/07/o-nascimento-de-jesus-partes-1-2-e-3.html
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O Natal se passou há dois dias, mas durante a semana, na forma “comercial”, ainda será comemorado. Há sempre espaço para mais um presente, para retribuir, enfim, o Natal não é mais o mesmo… Perdeu-se seu espírito e, praticamente, não passa de troca de presentes, muita bebida (muita mesmo!) e o mais variado cardápio. E isto se passa no mundo inteiro. Infelizmente é assim. O “motivador”, o centro da festa – Jesus Cristo – nem é lembrado, e se o é, é de forma rápida por meio uma oração. Nada mais que um fecho de horas, dias de preparação para a confraternização. As crianças vibram – o que é natural, mas os adultos entram em estado de catarse…
Por essa razão gostaria de partilhar este artigo, para repensarmos alguns costumes da atualidade:
Trazemos por viver ainda uma infância
Por José Tolentino Mendonça
“O entusiasmo com que os pequeninos vivem o Natal mostra bem como há uma perceção do Mistério da vida que lhes está próximo. Sem precisar de grandes recursos da racionalidade eles avizinham-se do essencial, conduzidos sobretudo pela linguagem insinuante dos símbolos. E não há dúvida que, nesta simplicidade tão singular, as crianças protagonizam formas de compreensão profunda daquilo que o Natal constitui.
Mas como acontece com as mais importantes narrativas da Infância, o Natal tem um endereço mais acima: pede para ser lido e decifrado por um coração adulto. Ainda que caiba às crianças a expressão mais vibrante do que nestes dias se celebra, os efetivos depositários da mensagem (isto é, aqueles que mais incondicionalmente a podem acolher) são os adultos. O dano mais pernicioso do dito “Natal comercial” é a manutenção de uma retórica infantilizada e equívoca, que oculta a mensagem aos seus verdadeiros destinatários. De repente, parece que o Natal é apenas uma história que existe para colocar um sorriso deslumbrado no rosto das crianças e esquecemos que é no fundo complexo da alma de um adulto, nesse oceano emaranhado e confuso, que o acontecimento do Natal vem despertar uma centelha.
Se olharmos para o enredo natalício, mesmo no modo sóbrio como os Evangelhos o relatam, percebemos que nada é cor-de-rosa. O que os seus atores vão viver é uma história de instabilidade, perturbação e desconcerto. “O que é que nos aconteceu?” – ter-se-ão perguntado repetidas vezes Maria e José, mas também os pastores acordados em sobressalto ou os magos vindos de longe. “O que é que nos aconteceu?”. E não tinham à mão (como nós não temos) tranquilizantes respostas, mas sim um caminho que lhes era proposto na surpresa, na maturação paciente e na confiança. O próprio local onde a cena se desenvolve, um modestíssimo piso térreo que servia de refúgio aos animais, mostra bem a implacável dureza das circunstâncias. Mas doutra maneira como é que esta divina história poderia servir de modelo para todas as histórias humanas?!
O Natal de Jesus, o mistério da sua encarnação, reconfigura radicalmente a condição humana, porque deposita nela inventivas possibilidades. Estamos habituados a ver no inelutável ciclo das estações, primavera, verão, outono, inverno, o modelo da própria vida. Julgamo-nos chegados, cada vez mais chegados, de uma primavera ou de um verão que julgávamos invencíveis ao irremediável obscurecer do outono ou à íngreme solidão da paisagem no inverno. O nascimento humano de Deus inaugura, porém, um esperançoso contraciclo: a nossa vida deixa de explicar-se como uma marcha do nascimento para a morte, para efetivar-se na imagem de um incessante renascer. Contemplando a manjedoura do Deus Menino, qualquer que seja a nossa idade e o peso dos nossos anos, sentimos como real aquele verso de Pedro Homem de Mello: «a minha [a nossa] infância ainda não morreu». De facto, a infância não é uma nostálgica trégua que o nosso passado encerrou, mas o futuro que um modo novo de entender a história nos entreabre. Trazemos por viver ainda uma infância – é o que o Natal nos segreda.”
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias da Madeira
24.12.10
Texto “Trazemos por viver ainda uma infância” publicado por Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura(SNPC).